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Da morte e da morte voluntária

O abismo.

“Naturalmente, nunca é fácil viver. Continua-se a fazer gestos que a existência determina por uma série de razões entre as quais a primeira é o hábito. Morrer voluntariamente pressupõe que se reconheceu, ainda que instintivamente, o caráter irrisório desse hábito, a ausência de qualquer razão profunda de viver, o caráter insensato dessa agitação cotidiana e a inutilidade do sofrimento”.

(Camus. O mito de Sísifo)

A morte é terrível. Quando menos se espera ela lança sua foice fatal, de modo cruel e definitivo, e nos faz lembrar de nossa condição finita, provisória, passageira. A morte não é só triste porque nos arranca uma pessoa querida da convivência. Ela nos coloca lado a lado com o sentido da vida, provocando em cada um de nós aquela pergunta radical: o que estou fazendo da minha vida?

Já ouvi de um professor que a morte ocupa hoje o lugar que o sexo ocupava há algumas décadas: dela não se fala, a não a ser a boca pequena, bem baixinho e longe da família; não é assunto de criança, é proibido para menores; o lugar da morte deve ser o mais afastado possível do centro urbano: os cemitérios se localizam onde eram os bordéis de antigamente; os filmes de terror provocam a excitação que a exibição de filmes eróticos causavam antigamente. Por tudo isso, parece macabro falar da morte. No entanto, é necessário, pois, como dizia Montaigne, quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver.

A morte assusta. O suicídio mais ainda. Albert Camus disse que o suicídio é o único problema atualmente sério da filosofia, porque a questão fundamental é julgar se a vida vale ou não ser vivida. A única espécie capaz de se matar é o ser humano. Nem mesmo o escorpião comete suicídio, como crê o senso comum.

Suicídio tem três dimensões que merecem análise. Em primeiro lugar, o ato de interromper a própria vida acontece em um momento de alienação em que o autor acredita ser esta a única atitude para pôr fim a sua angústia e à sua total falta de perspectiva. Embora seja um ato irracional, o suicídio acontece diante da mais absoluta falta de alternativa para viver. Dentro da “lógica” do suicida, viver não tem mais razão de ser, daí a opção pela morte. O suicídio é uma tentativa humana em busca de um desejado equilíbrio, ainda que alienada.

Em segundo lugar, o suicídio decorre da ausência absoluta de sentido. Ele nos choca porque duvidamos da possibilidade de não se ter uma perspectiva para a vida. Quando se trata de alguém do nosso convívio então, nos leva a pensar se não seria possível acenar-lhe, de um jeito ou de outro, com um caminho que lhe oferecesse uma saída, ou, ao menos, uma esperança.

Em terceiro lugar, apesar de revelar a ausência de sentido, a reflexão sobre o suicídio provoca a busca do sentido da vida. Embora filósofos, religiosos e cientistas estejam buscando respostas desde os tempos primordiais, constata-se que é impossível desvendar o mistério do Universo e da vida no Universo. Onde buscamos um fundamento, encontramos um abismo profundo. Ao mesmo tempo que o abismo de sentido gera angústia, essa ausência de fundamento é condição de liberdade, pois é justamente o vazio que oferece a plena condição de cada um construir o fundamento que bem entender. Liberdade é um valor que nos permite construir um sentido particular para a vida, a partir dos próprios valores e sentimentos. A base da liberdade é o abismo.

Enfim, pensar a morte é pensar a vida, pois é a partir dela que se constata o absoluto mistério, fonte de nossa liberdade. É do abismo que o homem se faz fundante e fundante em liberdade, como diz Auxiliadora Brasil, autora da Teoria Psicoterapêutica Analítico-fenomenológico-existencial. Compete a cada um construir o edifício de seus conhecimentos, de seus valores e de suas crenças. Para quê? Para dar sentido a este mistério abissal e deslumbrante, condição para ser feliz.

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