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“Alô, quem está falando?”

segurandoTelefone

Até há bem pouco tempo, quando se fazia uma ligação para um telefone residencial, a pergunta que se fazia ao ouvir “alô” do outro lado da linha era “quem está falando?” Em famílias mais cerimoniosas, o pai recomendava não fazer essa pergunta por considerá-la pouco educada, sem a civilidade considerada ideal. Aconselhava, no máximo, identificar-se antes de se perguntar quem está falando: “aqui é o fulano de tal, com quem eu falo?” Também orientava os filhos para, quando atender chamadas, nunca dizer quem está falando antes de saber quem é que fala do outro lado. À pergunta quem está falando respondia-se um seco número; “você ligou para 3486-8686”. Na era da informação, a pergunta mudou. Quando se liga para um telefone celular, não se pergunta mais quem está falando. A pergunta agora é “Alô! Onde você está?”
A razão desta mudança é clara. Com o advento do celular, o telefone deixou de ser um aparelho de uso coletivo e se transformou em um aparelho de uso exclusivamente pessoal. Certa vez, um indivíduo ligou para o meu celular. Como eu não podia atendê-lo, pedi a minha mulher que o fizesse. Ao ouvir o alô, pronunciado por uma voz de mulher, ele disse: Desculpe, foi engano. O telefone tocou em seguida, ela atendeu novamente e o rapaz lhe disse: “Estou ligando para o Roberto e aqui na loja me deram esse número, desculpe de novo”. Antes de desligar, minha mulher lhe informou que de fato o telefone era o meu.
O telefone fixo é da casa. Seu uso é coletivo. Todos os residentes fazem e recebem chamadas. O telefone celular é pessoal. Seu uso é individual. Ele vai aonde o sujeito vai, no bolso, no cinto, na pasta, na bolsa. Se tocar, alguém o acha, mesmo sem saber se a hora é apropriada. As pessoas mais educadas costumam perguntar: “Você está podendo falar agora?” Como outros não fazem essa pergunta, muitos preferem deixar o aparelho desligado para não atender ligações.
Parece claro que a pergunta não poderia continuar a mesma. Não faz sentido perguntar quem que está falando quando se liga para o celular, se seu uso é praticamente exclusivo. Embora essa pergunta, que alguns consideram uma intromissão indevida na privacidade do outro, tenha dado lugar a outra, o curioso é que a pergunta que a substitui – onde você está? – mantém a mesma falta de cerimônia da primeira.
Vivemos em um mundo cada vez mais individualista. O consumismo anda de mãos dadas com o individualismo. Se em uma casa vivem 5 adultos, um telefone fixo serve para todos eles. Se a moderna tecnologia passa a oferecer a possibilidade de você fazer e receber ligações de onde estiver, todos vão querer um telefone celular. O benefício é grande, pois o telefone nunca estará ocupado se o próprio dono não o estiver usando. No entanto, serão vendidos cinco aparelhos móveis, ao invés de apenas um, fixo. E mais, são cinco novas contas. Como a ligação do telefone celular é mais cara que a ligação do telefone fixo, ninguém manda desligar o telefone fixo. Resultado: na verdade são agora seis contas.
Do ponto de vista individual, desconsiderando-se os custos e a rápida obsolescência dos aparelhos de telefonia móvel, cada um ter seu próprio telefone é uma grande vantagem, pois ninguém vai precisar esperar que o telefone se desocupe para fazer sua ligação. Ao descrever a ansiedade pela espera do telefonema do amado, Roland Barthes dizia que o apaixonado é aquele que espera. No caso de um telefonema, a espera exigia de um sujeito apaixonado que ele ficasse imóvel, ao lado do telefone. Agora já não é mais preciso. O homem ganhou mais liberdade. Pode ir e vir como bem entender, desde que seja com o seu telefone a tiracolo, claro. Viva a tecnologia!
O apaixonado de Barthes ganha mais liberdade para procurar se distrair da sua ansiedade de espera, mas ela continua ali, incomodando, lembrando-lhe que o outro também é livre para abandoná-lo, até mesmo para esquecê-lo. A sua ansiedade não foi resolvida. Cada vez mais livre, cada vez mais dono de novas tecnologias, cada vez mais consumidor, mas nem por isso menos ansioso. A atomização da família, ilustrada pela individualização da posse e do uso do telefone celular, não deu maior autonomia para os indivíduos também serem donos de si mesmos, capazes de administrar a própria ansiedade e respeitar o espaço e a privacidade do outro.
Se o respeito à própria individualidade é um valor, também o é o respeito à individualidade do outro. O telefone celular é um fantástico instrumento que confere maior autonomia ao indivíduo, no entanto, não implica necessariamente respeito à individualidade do outro. Desconfio que a tecnologia tem mudado muito rapidamente as relações sociais, mas o indivíduo continua o mesmo. A falta de educação, revelada pela pergunta “quem está falando” ainda resiste diante de uma nova tecnologia, transformada em uma nova pergunta – “onde você está” – que mantêm a mesma essência.
A diferença é que quando a família ainda era um grupo, havia um pai para orientar o seu filho a como fazer e como atender uma ligação. Na família atomizada de hoje, temo pela ausência deste educador. Não que ele não esteja ali para ensinar o modo correto de se proceder em diferentes situações sociais. São as situações sociais que estão se transformando em problemas privados, sobre os quais os pais não têm mais a liberdade de interferir, sob o pretexto de estar respeitando a individualidade do outro.
A consciência da civilidade, no sentido de respeitar o espaço do outro e ter para com ele e o ambiente o mínimo de educação para conviver, não cresce a reboque das novidades tecnológicas. Pelo contrário, parece que as inovações tecnológicas podem fazer novos desafios éticos, mas com a agravante de passaram despercebidos.

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